Joaquim Carvalho
Artista Plástico
Introdução
Refracções- A luz e a Arte vivem num único tempo ─ passado-presente-futuro.
Os criadores afloram dimensões espaciais e temporais da alma colectiva do Universo.
Perscrutam o éter presente em todas as coisas e lêem com clareza todos os sinais que elas imanam, em oposição à ausência de percepção por parte de olhares menos atentos ou pouco sensÃveis. Desta feita acedem a passados indutores de futuros que hão-de ser presentes de novos futuros.
As aquisições do presente de agora ― possÃveis por haver referentes ancestrais que só os criadores são capazes de decifrar ― permitem atualizar, continuadamente, o futuro de próximos futuros.
Os criadores são decifradores de mistérios. Detêm olhares improváveis sobre as coisas em resultado de agudos modos de as questionar.
Mais rápidos a renovar sonhos do que acordar deles vivem sonhando permanente, o que lhes amplia as capacidades de interpretação do universo a cada novo olhar consentido.
Sempre presentes estão
o olhar-táctil; o olhar-pensamento; o olhar-sensação ― olhar sem toque ou tentativa de compreensão do objecto onde o olhar poisa.
Ou ainda o olhar devolvido aos criadores através da pureza das emoções
produzidas por perfeitos reflexos do que é olhado!
Olhares que tudo abarcam nos actos de apreensão do significado das coisas pelos sentidos ou pela ausência deles. E também pela razão.
É através da Arte que se renova as percepções que se colhem da interacção com objectos fÃsicos ou imateriais. Só a Arte acrescenta perspectivas novas sem alterar o que é essencial e sensÃvel no que é interpelado. É a Arte que elege o que de mais relevante e harmonioso há-de caber em todos os futuros do futuro.
A Arte é um pouco mais de luz sobre as coisas!...
Os criadores percepcionam frequências de luz visÃvel e invisÃvel. Toda a luz, afinal!
Luz de hoje que é a luz de ontem e que do futuro será luz! Sempre a mesma luz a viajar!
Luz que nunca se cansa de tocar corpos negros sem neles se deixar aprisionar!
Luz que tudo transforma sem perda ou dano mantendo intacta a identidade do objecto tocado.
Luz cinética todo o tempo, por não ser possÃvel a sua imobilidade!...
Luz concretamente abstracta apaziguadora de iras e de cegueiras induzidas por causas que não colhem merecimento.
Luz que se desoculta da matéria pura ao desenhar-lhe as formas.
Luz que traz até nós o que no universo mais antigo foi princÃpio.
Sendo a Arte um pouco mais de luz sobre as coisas também ela vive e viaja, continuamente, na escala de um tempo universal tornando-se eterna ao transcender o acto criativo e o próprio criador.
A Arte vive num único tempo ─ passado-presente-futuro ─ na totalidade do mesmo espaço que a luz habitou, que habita e que há-de habitar para sempre!....
A Arte, tal como a luz num prisma, a cada olhar refracta-se, ganhando significações novas sempre que viaja para meios culturalmente diferentes.
A fragmentada Obra de Fernando Pessoa, plena de jogos de luzes e de sombras, cresce quando sofre múltiplas refracções. Nela se encerra a purÃssima Arte de transmutar ideias antigas e modernas em intemporais ideias.
De Durban a Lisboa foi a distância fÃsica que Pessoa teve que cumprir para criar Obra e deixá-la pronta para a universalidade sem tempo!
De Lisboa a Lisboa é distância que eu cumpro para enaltecer Pessoa. Apesar de nada saber do merecimento da Obra que crio com o propósito enunciado, guardo o grato entendimento de persistir em respirar, sempre que faço nascer do vazio formas adivinhadas- aquelas e não outras!
A personalidade fragmentária de Pessoa foi o fio condutor na concretização deste meu projecto plástico. A heteronÃmia de Fernando Pessoa fez crescer em mim espaços de reflexão abrangentes mais propÃcios à Arte da construção e da desconstrução de inventados universos. Ajudou-me a perceber e a aceitar o Homem como um Ser versátil que pode expressar-se multiplamente, sem preconceitos, em espaços criativos de plena liberdade. Foi com Fernando Pessoa que consolidei a ideia de a Arte, no princÃpio, ser pensamento, e no fim, ser alimento! Do Universo!
Universo que nunca fica saciado de revoluções estéticas que alimentam mudanças!
A apologia do fim da hipocrisia criativa propalada por criadores desassombrados como Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e outros criadores de Orpheu, e a construção ortonÃmica de Pessoa, foram mote para intervenções estéticas radicais que conduziram ao rompimento de cânones criativos da época.
A sátira incontida e a irreverência nos textos de Almada a par da pitagórica força das suas criações plásticas;
a quase desmaterialização da palavra poética em Mário de Sá-Carneiro, ― a quem foi permitido tocar só o quase de tudo ―, plasmada num discurso expressivo da angústia e do tédio ao não conseguir ser um e o outro, uma espécie de exilado correspondente de si próprio;
as representações fragmentadas de objectos, com base na interpretação e compreensão dos mesmos, e a valorização das texturas acompanhada da libertação da cor, operadas por Amadeu de Souza- Cardoso;
tiveram efeitos catalisadores nas transformações estéticas de toda a produção artÃstica em Portugal, ainda que tardia, ocorrida a partir dos anos sessenta do século vinte.
Os resultados dessas influências perduram. Por tudo isto, como Pessoa afirmou:
Orpheu acabou. Orpheu continua!
Paço de Arcos, 17 de Março de 2015
Joaquim Carvalho