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Introdução

Refracções- A luz e a Arte vivem num único tempo ─ passado-presente-futuro.

 

Os criadores afloram dimensões espaciais e temporais da alma colectiva do Universo.

Perscrutam o éter presente em todas as coisas e lêem com clareza todos os sinais que elas imanam, em oposição à ausência de percepção por parte de olhares menos atentos ou pouco sensíveis. Desta feita acedem a passados indutores de futuros que hão-de ser presentes de novos futuros.

As aquisições do presente de agora ― possíveis por haver referentes ancestrais que só os criadores são capazes de decifrar ― permitem atualizar, continuadamente, o futuro de próximos futuros.

 

Os criadores são decifradores de mistérios. Detêm olhares improváveis sobre as coisas em resultado de agudos modos de as questionar.

Mais rápidos a renovar sonhos do que acordar deles vivem sonhando permanente, o que lhes amplia as capacidades de interpretação do universo a cada novo olhar consentido.

Sempre presentes estão

o olhar-táctil; o olhar-pensamento; o olhar-sensação ― olhar sem toque ou tentativa de compreensão do objecto onde o olhar poisa.

Ou ainda o olhar devolvido aos criadores através da pureza das emoções

produzidas por perfeitos reflexos do que é olhado!

Olhares que tudo abarcam nos actos de apreensão do significado das coisas pelos sentidos ou pela ausência deles. E também pela razão.

É através da Arte que se renova as percepções que se colhem da interacção com objectos físicos ou imateriais. Só a Arte acrescenta perspectivas novas sem alterar o que é essencial e sensível no que é interpelado. É a Arte que elege o que de mais relevante e harmonioso há-de caber em todos os futuros do futuro.

 

A Arte é um pouco mais de luz sobre as coisas!...

 

Os criadores percepcionam frequências de luz visível e invisível. Toda a luz, afinal!

Luz de hoje que é a luz de ontem e que do futuro será luz! Sempre a mesma luz a viajar!

Luz que nunca se cansa de tocar corpos negros sem neles se deixar aprisionar!

Luz que tudo transforma sem perda ou dano mantendo intacta a identidade do objecto tocado.

Luz cinética todo o tempo, por não ser possível a sua imobilidade!...

Luz concretamente abstracta apaziguadora de iras e de cegueiras induzidas por causas que não colhem merecimento.

Luz que se desoculta da matéria pura ao desenhar-lhe as formas.

Luz que traz até nós o que no universo mais antigo foi princípio.

 

Sendo a Arte um pouco mais de luz sobre as coisas também ela vive e viaja, continuamente, na escala de um tempo universal tornando-se eterna ao transcender o acto criativo e o próprio criador.

A Arte vive num único tempo ─ passado-presente-futuro ─ na totalidade do mesmo espaço que a luz habitou, que habita e que há-de habitar para sempre!....

A Arte, tal como a luz num prisma, a cada olhar refracta-se, ganhando significações novas sempre que viaja para meios culturalmente diferentes.

 

A fragmentada Obra de Fernando Pessoa, plena de jogos de luzes e de sombras, cresce quando sofre múltiplas refracções. Nela se encerra a puríssima Arte de transmutar ideias antigas e modernas em intemporais ideias.

 

De Durban a Lisboa foi a distância física que Pessoa teve que cumprir para criar Obra e deixá-la pronta para a universalidade sem tempo!

De Lisboa a Lisboa é distância que eu cumpro para enaltecer Pessoa. Apesar de nada saber do merecimento da Obra que crio com o propósito enunciado, guardo o grato entendimento de persistir em respirar, sempre que faço nascer do vazio formas adivinhadas- aquelas e não outras!

 

A personalidade fragmentária de Pessoa foi o fio condutor na concretização deste meu projecto plástico. A heteronímia de Fernando Pessoa fez crescer em mim espaços de reflexão abrangentes mais  propícios à Arte da construção e da desconstrução de inventados universos. Ajudou-me a perceber e a aceitar o Homem como um Ser versátil que pode expressar-se multiplamente, sem preconceitos, em espaços criativos de plena liberdade. Foi com Fernando Pessoa que consolidei a ideia de a Arte, no princípio, ser pensamento, e no fim, ser alimento! Do Universo!

 

Universo que nunca fica saciado de revoluções estéticas que alimentam mudanças!

 

A apologia do fim da hipocrisia criativa propalada por criadores desassombrados como Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e outros criadores de Orpheu, e a construção ortonímica de Pessoa, foram mote para intervenções estéticas radicais que conduziram ao rompimento de cânones criativos da época.

 

A sátira incontida e a irreverência nos textos de Almada a par da pitagórica força das suas criações plásticas;

 

a quase desmaterialização da palavra poética em Mário de Sá-Carneiro, ― a quem foi permitido tocar só o quase de tudo  â€•, plasmada num discurso expressivo da angústia e do tédio ao não conseguir ser um e o outro, uma espécie de exilado correspondente de si próprio;

 

as representações fragmentadas de objectos, com base na interpretação e compreensão dos mesmos, e a  valorização das texturas acompanhada da  libertação da cor, operadas por Amadeu de Souza- Cardoso;

 

tiveram efeitos catalisadores nas transformações estéticas de toda a produção artística em Portugal, ainda que tardia, ocorrida a partir dos anos sessenta do século vinte.

 

Os resultados dessas influências perduram. Por tudo isto, como Pessoa afirmou:

 

Orpheu acabou. Orpheu continua!

 

 

                                                                                                       Paço de Arcos, 17 de Março de 2015

                                                                                                                                   Joaquim Carvalho

 

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